Nesta semana, compartilhamos o texto do
Porvir que fala sobre o redesenho do sistema educacional finlandês, que coloca projetos transversais à frente de disciplinas:
Experimentar e não ter medo de falhar é um lema repetido com certa frequência por empreendedores. Na educação, até pelo número de envolvidos diretamente no processo, a estratégia costuma ser deixada de lado. Não na Finlândia. Apesar de figurar entre os 10 melhores em ciências e leitura no PISA (sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Alunos, exame realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o país começa a pôr em prática uma nova maneira de ensinar, na qual disciplinas e o conteúdo perdem espaço para competências e alunos ganham papel ativo na avaliação.
Na última semana, uma reportagem do jornal britânico The Independent trouxe pistas sobre o novo plano finlandês: tópicos, como “mudança climática” e “centenário da independência da Finlândia” começam a receber mais ênfase do que a transmissão de conteúdo por meio da rigidez das disciplinas. Em um passo além do que hoje acontece por no mínimo dois períodos ao ano nas chamadas “aulas de fenômenos”, a grade horária se torna mais flexível para que o estudante entre em contato com conceitos de economia, história, geografia e línguas estrangeiras de modo transversal com a ajuda de temas do cotidiano. A partir de 2016, novas diretrizes curriculares vão induzir a implantação de aulas e práticas colaborativas com diversos professores trabalhando simultaneamente com um mesmo grupo de alunos. Na capital do país, Helsinque, 10 escolas já aplicam essa metodologia, enquanto outras dão os primeiros passos.
Para saber mais sobre as mudanças em curso, Porvir conversou com Marjo Kyllönen, secretária de educação da cidade, a maior rede do país, com 198 escolas, 36.000 alunos e 3.000 professores. Kyllönen explica que o plano é mudar o foco, sair do ensino tradicional que forma indivíduos prontos para obedecer e partir para uma solução inovadora que ajude no progresso da sociedade finlandesa. A representante de Helsinque detalha ainda mudanças no modo de avaliar professores, que passariam a ter feedback da própria classe. Medo de dar errado? “Eu não tenho medo. Esse novo jeito de ensinar permite resultados muito melhores em diferentes áreas, porque você passa a aprender sobre determinado tema para a vida e não somente para a escola”. Leia a entrevista abaixo:
Porvir – Por que vocês estão fazendo essas mudanças agora?
Marjo Kyllönen - Precisamos mudar a maneira de ensinar e o trabalho que é feito dentro da sala de aula. Claro, ainda é necessário conhecimento em matemática e ciências, mas agora o foco é garantir às crianças as habilidades necessárias para a sociedade do futuro. O modo tradicional de ensino foi feito para a era industrial, com todos os trabalhadores fazendo a mesma coisa e se mostrando obedientes, mas para o amanhã e para o futuro é necessário fazer diferente e desenvolver habilidades individuais e, ao mesmo tempo, demonstrar colaboração, capacidade de inovar, ter coragem para fracassar e encontrar novos modos de fazer as coisas. É por isso que acredito que a Finlândia ocupa a parte de cima de rankings como o PISA (sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Alunos) . Não podemos sentar e ficar só esperando e, sim, trabalhar no redesenho do sistema educativo.
Porvir – Como as mudanças têm sido implementadas?
Kyllönen – Quando falamos de Helsinki, nos referimos a dez escolas que adotaram esse tipo mais abrangente da metodologia, com aulas de fenômenos substituindo de modo abrangente as disciplinas no currículo. A grande maioria, no entanto, já tem realizado um trabalho experimental: o critério mínimo é que cada estudante participe em dois processos a cada ano letivo, da primeira à nona série [período que compreende a educação obrigatória]. Esse trabalho deve durar pelo menos duas semanas e envolver diferentes disciplinas. Quando levamos esse assunto às escolas, falamos sobre o que muda no dia a dia, do papel mais ativo dos alunos, de como o conteúdo não é tão importante quanto se pensa e, principalmente, para que os líderes [das escolas] não tenham medo de falhar, porque quando se começa algo novo, não se sabe quais serão os resultados.
Porvir – Como vocês preveem o impacto dessas mudanças em exames internacionais como o PISA?
Kyllönen – Uma parte da resposta é que depende do que o PISA vai avaliar. Se continuar a verificar o aprendizado de habilidades do dia a dia, penso que continuaremos em boa posição no ranking. Se quiserem acompanhar conhecimento em matemática, tudo bem, não vamos deixar de lado essas habilidades básicas. Só que faremos isso de um jeito diferente e nosso objetivo é que os resultados em escala global nos permitam ficar entre as dez primeiras posições e, por que não, na liderança [risos]. Eu não tenho medo. Esse novo jeito de ensinar permite resultados muito melhores em diferentes áreas, porque você passa a aprender sobre determinado tema para a vida e não somente para a escola.
Porvir – Existe alguma data para que todas as escolas sigam a nova metodologia em seu nível mais amplo?
Kyllönen – Não temos um prazo. Estamos discutindo e reimaginando a educação há anos e agora a proposta ficou suficiente madura. Minha experiência mostra que quando o professor aprende a desenhar essas aulas de fenômenos, ele não quer voltar para o modo tradicional de ensino. Mesmo quando está sozinho, ensinar matemática de um jeito diferente é o mais importante, porque alunos ficam mais motivados e têm melhor desempenho. Estamos dando pequenos passos e, em agosto de 2016, um novo currículo será implementado e começaremos a ensinar a partir dele. Sei que temos mais escolas que planejam adotar um currículo baseado em “fenômenos” para todas suas atividades. No momento temos dez, mas a maioria começa a fazer alguma coisa.
Porvir – Como é o trabalho para convencer professores a mudar sua filosofia de trabalho?
Kyllönen – Essa é uma questão que também tem sido trabalhada há algum tempo. Além de responsável pela educação em Helsinque, também sou pesquisadora e fiz minha tese de PhD sobre liderança escolar. A meu ver, os principais agentes de mudança são os líderes escolares. Em 2005, adotamos um nova organização em todas as escolas: temos um grupo formado por diretor, vice-diretor e, abaixo deles, líderes de equipe. Ao mesmo tempo, existe um grupo de 50 professores-tutores, supervisionado por especialistas do meu departamento, que trabalham em sala de aula e ainda fazem um trabalho de desenvolvimento profissional promovido pelo município. Eles vão até as escolas para dar exemplo de como implementar as aulas de fenômenos. Nós fazemos assim porque eles podem dizer “Eu já fiz isso na aula e funciona dessa maneira, estas são as dificuldades e desafios” e não fica parecendo que é o nível mais alto da hierarquia dando ordens. Quando a informação vem do chão da escola, os professores se convencem de que é possível e ficam mais motivados.
Porvir – E qual a opinião dos pais dos alunos?
Kyllönen – Na Finlândia, temos o privilégio de ter uma sociedade que valoriza a educação e os professores. Existem algumas escolas que estão dando apenas os primeiros passos e outras muito avançadas nessa reforma de suas rotinas. A resposta dos pais, no entanto, é muito satisfatória porque seus filhos estão verdadeiramente motivados.
Porvir – Que tipos de tópicos os alunos vão trabalhar?
Kyllönen – A base curricular comum da Finlândia permite à autoridade local decidir os rumos da educação e a autoridade nacional dá apenas as diretrizes. Antes das aulas de fenômenos, professores e tutores se envolvem no planejamento para escolher as disciplinas, objetivos e conteúdos que serão trabalhados. A palavra final fica por conta das escolas. Não obrigamos a fazer isso ou aquilo. Até mesmo os alunos podem definir quais serão os tópicos do currículo, pois podem aprender um mesmo conteúdo com a ajuda de diferentes tópicos. Então, não há necessidade que a autoridade municipal defina o que será visto na sala de aula.
Porvir – Falando um pouco mais sobre novas maneiras de ver o aprendizado, a França discute abolir notas de avaliação. Vocês pensam em fazer algo parecido?
Kyllönen – Na Finlândia não fazemos ranking de escolas. Em vez resultados individuais, pensamos no processo de aprendizagem. Uma das principais maneiras de se fazer isso é torná-lo mais perceptível, orientar estudantes e dizer a eles em quais áreas estão bem, quais são suas dificuldades e como podem resolvê-las. Enfatizamos o processo, não o resultado em si. Esse é nosso principal conceito de avaliação. Claro, no final de cada ano escolar, eles recebem suas notas para saber em que nível estão, mas não para se comparar com os colegas, e sim para entender se os objetivos traçados no início das aulas foram cumpridos. Como eles podem criar um plano individual de estudos, os objetivos são diferentes daqueles dos colegas. Nosso ethos para avaliação é bem singular e vemos esse processo como oportunidade de guiar a aprendizagem. Deve-se dar aos alunos meios para autovaliação e o professor não deve ser o único responsável por ela, que também deve acontecer entre pares, por meio de feedback entre colegas. Além disso, vemos que é importante que o professor seja avaliado pelos pupilos — e não só por seus chefes — e é o que buscamos enfatizar para o futuro.