A Universidade Shure surgiu em 1999, em Tóquio, no Japão, e é uma das experiências pioneiras no mundo na adoção dos princípios da educação democrática (liberdade na aprendizagem e gestão coletiva) no contexto universitário. Alex Bretas entrevistou Kageki Asakura, um dos criadores da universidade, na IDEC@EUDEC 2016, uma conferência internacional que reúne todo ano pessoas que empreendem projetos de educação democrática. Conheça melhor a iniciativa por meio de trechos do bate-papo:
Alex: Existem várias coisas que eu gostaria de saber mais sobre você e a universidade Shure. Em primeiro lugar, quero te perguntar sobre um conceito. Você poderia me dizer qual é sua visão sobre aprendizagem? O que essa palavra significa para você? Como esse significado afeta seu trabalho?
Kageki: Há duas coisas que compõem a aprendizagem para mim: primeiro, me conhecer, saber quem sou eu. Descobrir quem eu sou é uma grande motivação para que eu aprenda. Aprender significa para mim, primeiramente, saber quem sou eu. Assim, ao aprender, eu começo a descobrir muitas coisas sobre mim mesmo. A segunda coisa que compõe o aprendizado é criar minha própria compreensão sobre o mundo e a sociedade. É importante ter em mente que não se trata do entendimento de um outro, e sim do meu entendimento único a respeito da minha comunidade, sociedade, do mundo que me cerca e do território onde vivo.
Alex: Incorporando esse entendimento a respeito da aprendizagem, você poderia me contar como a história da universidade Shure começou e como foi o seu envolvimento nisso?
Kageki: Desde 1992, eu trabalhava como professor de Ensino Médio na escola democrática Tóquio Shure. Os estudantes tinham ampla liberdade para aprenderem, mas quando eles se formavam e saíam da escola, se eles quisessem continuar estudando eles precisavam ir para outro lugar, talvez faculdades ou universidades.
No entanto, no Japão infelizmente as universidades não são apropriadas para que os estudantes formados em escolas democráticas estudem. Em primeiro lugar, para entrar nas universidades, eles precisam ser aprovados em provas muito competitivas. Para você ter uma ideia, muitos estudantes fora das escolas democráticas se preparam para essas provas durante 9 ou 10 anos. Muitos deles começam com 8 ou 9 anos a frequentar escolas preparatórias para o vestibular depois do período regular da escola. No Japão esses lugares são chamados escolas “cram”. Eles memorizam toneladas de conhecimento apenas para se preparar para as provas que terão de enfrentar anos depois. Ou seja: desde muito cedo eles estão lá memorizando, memorizando, então é realmente muito competitivo. Contudo, os estudantes das escolas democráticas não entendem a razão disso. É perda de tempo para eles. O que acontece é que depois do vestibular esses jovens esquecem tudo que eles “aprenderam”, pelo simples fato de que isso não é necessário em suas vidas. É um esforço sem sentido. Assim, quem frequenta uma escola democrática geralmente não quer ter que prestar um exame tão competitivo e rígido.
Mesmo depois de passar no vestibular, muitos estudantes universitários japoneses continuam se concentrando apenas em se preparar para conseguir um emprego. Vários deles buscam a todo custo conseguir boas notas em testes de proficiência em inglês como o TOEFL e o TOEIC, porque esses exames são uma boa preparação para conseguir uma vaga de trabalho. Desse modo, para quem estudou numa escola democrática, as universidades tradicionais não são um lugar tão interessante.
Além disso, nas universidades japonesas a estrutura costuma ser muito hierárquica. O professor é quem decide tudo: “no meu seminário, vocês precisarão ler este livro que eu escolhi” e coisas desse tipo são comuns.
Dessa forma, em 1998 um grupo de jovens se reuniu para começar a pensar numa alternativa. Mais da metade deles haviam se formado na Tóquio Shure, e a outra metade estudara em outras escolas democráticas ou haviam sido desescolarizados pelos seus pais. Esse grupo e eu começamos um comitê com o objetivo de criar uma universidade democrática. Todos queriam um lugar configurado para a educação livre num patamar de universidade, mas não existia um lugar assim. Por isso nós decidimos criá-lo. No começo nós tivemos longas discussões: em quais dias iríamos abrir, quanto custaria estudar nessa universidade, como seria o orçamento etc. Depois de conversar muito, no final de 1999 abrimos a universidade Shure. No início nós tínhamos apenas duas salas e seis estudantes. Foi assim que começamos esse processo.
Alex: Queria te perguntar algumas coisas mais específicas sobre como a universidade funciona hoje. Você poderia me descrever o caminho típico de um estudante desde que ele decidiu se matricular na Shure? O que acontece primeiro, e quais são as possibilidades que a universidade oferece para cada um na medida em que eles progridem?
Kageki: Em primeiro lugar, nós pedimos à pessoa para experimentar uma semana na universidade, de modo que ela possa decidir com segurança se ela quer estar lá ou não. Assim, cada novo estudante após a primeira semana pode tomar sua decisão a respeito de permanecer estudando na Shure ou não. Isso é importante porque nossa universidade é muito diferente das outras universidades japonesas. Muitas coisas são diferentes, então geralmente é muito difícil que as pessoas compreendam apenas por meio de palavras. Experimentar é muito mais fácil e permite ao estudante se analisar e então decidir se quer entrar na Shure. Mesmo se os pais de alguém quiserem que eles estudem na nossa universidade, se a própria pessoa não quiser, não faz sentido. Depois dessa primeira semana nós fazemos uma entrevista com a pessoa e perguntamos a ela como foi essa experiência. Se a pessoa então decide por se juntar à Shure, então nós lhe damos as boas-vindas. Não há condições ou restrições de entrada, exceto uma: os novos alunos precisam ter ao menos 18 anos. A condição essencial é a pessoa querer viver a experiência.
Se ela decidir que quer entrar, o primeiro passo é criar seu plano de aprendizado. Isso ocorre geralmente no início do ano letivo, que no Japão é em abril. Assim, cada estudante faz um plano de estudos para o ano, e para isso eles podem pedir ajuda a um professor.
No início do ano, todos os estudantes trazem suas ideias e nós as discutimos com o objetivo de montar o cronograma da universidade para aquele ano. Isso acontece nas reuniões gerais. Desse modo, alguns estudantes podem querer por exemplo ter aulas de filosofia, enquanto outros querem ter aulas de história, ao passo que um outro grupo pode querer criar um projeto de construção de um carro, e todos eles são bem-vindos para trazer qualquer ideia que tiverem. Depois de escutar todas as ideias, nós montamos o cronograma. Geralmente nós temos todo ano por volta de 20 a 30 atividades na agenda, mas não há qualquer obrigação. Talvez um aluno se envolva em 10 a 15 dessas atividades, ao passo que outra pessoa pode se envolver em apenas uma ou duas. A decisão é de cada um. Se a pessoa preferir criar um projeto individual, talvez ela não vá se envolver em nenhuma das aulas ou projetos do cronograma. É claro que, ao fazer isso, ele ou ela pode contar com o apoio dos professores ou de um de nossos mentores.
Nós temos 50 mentores e cada um deles tem sua especialidade: um é advogado, outro é filósofo e assim vai. Além disso, temos quatro professores para 40 estudantes, e nós professores também podemos apoiá-los se eles quiserem.
No início de outubro, um semestre depois do início do ano letivo, nós temos com cada estudante uma sessão de acompanhamento individual, e nessa conversa nós podemos ajudá-lo a ajustar seu plano de aprendizado para o ano, se for preciso.
E depois, no fim do ano letivo, todos os alunos fazem uma apresentação direcionada aos outros estudantes. Não há um formato específico para essa apresentação: se a pessoa quiser dançar, ela pode dançar, se ela quiser tocar uma música ou fazer uma fala com o auxílio do Powerpoint, se ela quiser escrever e apresentar um artigo, ela pode. Não há um formato obrigatório. E os outros alunos podem reagir à apresentação, de modo que cada estudante seja levado a refletir sobre o ano que passou. Um mês depois começa o próximo ano letivo, e assim os alunos que permanecerem começarão uma nova jornada. É um ciclo.
Quanto aos projetos, na Shure atualmente há um tema muito popular: cinema. Há algum tempo um grupo de estudantes começou um festival de cinema internacional. O que eles fizeram foi uma chamada aberta para filmes de todos os lugares, nacionais e internacionais. Os alunos, com a ajuda de um diretor de cinema experiente, escolheram os filmes a serem exibidos no festival. Eles também produziram um filme. Isso foi em agosto.
Em setembro e outubro há um momento de estudos autodirigidos. Geralmente no Japão, assim como em outros países como o Brasil, não é permitido usar o sujeito “eu” ao escrever artigos acadêmicos. Não é permitido escrever coisas como “eu gosto disso” ou “eu penso assim”.
Alex: Sim, isso é muito comum mesmo. Na academia somos impelidos a usar “nós” ou então até mesmo esconder o sujeito e fingir que ninguém está escrevendo aquilo.
Kageki: Sim, mas na universidade Shure, muitas pessoas estudam o eu. Elas buscam investigar e ressignificar o que aconteceu com elas mesmas no passado. Por exemplo: uma aluna começou a se aprofundar no seu complexo de inferioridade relacionado à sua percepção corporal. Ao interpretar algo que aconteceu consigo mesma, ela usou muito o sujeito “eu” em seus textos. Logo, todos são livres para escrever “eu” em seus artigos. Nós temos muitas pessoas cujos estudos estão mais voltados para o eu do que para a sociedade em que estão inseridas.
Em setembro, os estudantes escrevem um ensaio. Em outubro, eles também fazem uma apresentação pública de seus estudos, e nesse momento um filósofo faz um comentário crítico sobre as produções apresentadas.
Em dezembro nós temos um festival de teatro. No ano passado, convidamos uma escola democrática da Rússia para vir ao festival, e eles encenaram algumas peças de teatro russas para nós, e nós encenamos peças japonesas para eles.
Em fevereiro, um grupo de estudantes organiza uma exposição de arte. Temos esse tipo de evento aberto ao público umas quatro ou cinco vezes por ano.
Alex: Entrei no site da Shure e vi que vocês têm quatro tipos de atividades: cursos, projetos coletivos, projetos individuais e o curso “Criando seu próprio estilo de vida”. O que é exatamente o Criando seu próprio estilo de vida? É mesmo um curso ou é uma filosofia que embasa toda a universidade?
Kageki: Muitos estudantes da universidade Shure tem uma grande vontade de encontrar seus próprios caminhos na vida quando vêm até nós. Nossos estudantes estão realmente interessados em duas coisas: uma delas é responder à pergunta “quem sou eu?”. Eles têm esse interesse em comum. A outra coisa que eles querem é criar seu próprio estilo de vida. Essas duas coisas são muito importantes para eles. Por isso, o nome de uma de nossas aulas é “Criando seu próprio estilo de vida”. Contudo, isso não se aplica somente a esse momento, mas também a outros projetos e atividades que temos. Ao participar dos diferentes tipos de atividades oferecidos na universidade, eles estão criando seu estilo de vida.